Meu cordel tem a poeira
De estrada de sertão
Fazendo sua parada
Onde me der à benção
De oferecer pousada
Eu deixo por gratidão
A cada um uma história
Que conto com exatidão
Muito embora o sertão entoado no cordel acima esteja há milhas e milhas de distância do local onde foi escrito – a cidade de Mogi Mirim, situada no interior paulista – e sua autora jamais tenha pisado no sertão nordestino, Liliana Alegre trata do assunto com a empatia e familiaridade de quem é apaixonada por relatos orais e seus desdobramentos.
Funcionária pública na Prefeitura há mais de 25 anos e mogimiriana de nascença, Liliana já participou de espetáculos profissionais e amadores de teatro, dança e circo; atuou em performances e contação de historias; escreveu, dirigiu e compôs trilhas sonoras para espetáculos teatrais e é autora de textos literários.Um currículo surpreendente, ainda mais se considerarmos que ela nunca frequentou um curso superior específico. “A vida não me deu a possibilidade de ir para a faculdade, mas não me negou o direito de aprender”, diz Liliana, autodidata. “Minha família achava estranho. Não só a família, mas as pessoas de uma maneira geral, que só consideram ‘artistas’ aqueles que aparecem na televisão.” Esse tipo de julgamento, algo provinciano, jamais intimidou Liliana. Apesar de estar afastada dos palcos há pouco mais de um ano, segue produzindo seus textos e recentemente trabalha num novo projeto de teatro infantil.
Os textos de Liliana surgem principalmente da cultura oral, advinda dos relatos de pessoas que encontra na Praça Floriano Peixoto (região central de Mogi Mirim), principalmente nos pontos de ônibus. “Adoro andar de ônibus porque a gente fica ali, parado no ponto, esperando… Gosto de ficar ali. Eventualmente meu ônibus passa, mas prefiro ficar e esperar o próximo. É nesse lugar que converso com muitas pessoas, gente que nem sei o nome… E faço anotações mentais do que dizem… Vou juntando essas anotações em casa, como se fossem retalhos de uma colcha, e assim escrevo as histórias.”
Foi dessa forma que surgiu “Vida Jagunça (A Saga de Margarosa)”, sua criação favorita. Ela nos conta: “Fui criada na roça, onde havia muitos nordestinos perto da minha casa. Sempre gostei de conversar com a gente daquela terra. Nunca fui ao Nordeste, mas o Nordeste ficava de alguma maneira perto de mim, porque seus emigrantes estavam aqui, o povo do sertão, pessoas de muita fé. Então fui juntando os relatos que ouvia para escrever Margarosa, um teatro popular inspirado na literatura de cordel que fala da condição feminina, da mulher que vive no sertão: a mulher jogada e solitária, que é vista pelo marido como “uma panela de comida ou uma empregada”.
É dessa maneira que a personagem Margarosa se apresenta no texto:
Eu não sei se é direito o que dizem que Deus escreve certo por linhas tortas, pois quando ele escreveu minha vida ele fez mesmo foi garrancho. Pois penso que a vida de uns ele escreveu com letras redondinhas e a minha ele rabiscou foi de qualquer jeito. Se pensarem que resmungo feito uma mamangava eu lhes mostro que tenho razão.
Margarosa nascera em condições difíceis: a mãe já tinha 45 anos de idade e isso trouxe complicações no momento do parto. Com muito custo a menina vingou:
Nasceu!… Nasceu…Menina muié! Cabrita da
moléstia já nasceu tentando homicídio, quase
mata a mãe.- Eita! Pobre criança coloca nome de
flor que é pra ver se desenfeia.
Uns queriam que chamasse Margarida; outros que fosse Rosa. Acabou ficando Margarosa. Ao completar sete anos de idade e com o sumiço do pai, a menina foi obrigada a deixar a escola para trabalhar na roça e ajudar no sustento do lar. Seu primeiro presente foi uma enxada. Margarosa crescia, ensimesmada e excluída das brincadeiras com as outras crianças:
Era eu minha Mãe e a vida.
A Vida foi roubando a infância.
Era eu na lavoura. Era minha mãe nas rendas.
Eu ouvindo ao longe brincadeiras que não eram minhas.
Era Minha mãe vendo entre os dedos sua vida passar.
A renda enredava os sonhos e a lavoura barganhava com nosso
Sustento. O tempo ia tirando o doce da vida e colocando na cana e
botando o amargo na vida da gente.
Como se não bastasse, após uma visita repentina seguida de outra sumida do pai, a mãe da menina morre, deixando-a sozinha no mundo aos 14 anos de idade. É quando surge Mirosmoar, “jagunço do ruim, de buraco no coração”, para desposar Margarosa. Desposar é modo de falar, porque a menina é feita serviçal daquele homem que ninguém ousava enfrentar. Assim, fazia todas as tarefas da casa e ainda levava surra se a comida não agradasse o jagunço…
De tanto ser desrespeitada e tratada feito bicho, Margarosa se rebela contra o marido, transformando-se em Maria Jagunça. E o que acontece depois você só saberá lendo o texto, que a autora disponibiliza aqui para quem quiser ler ou encenar.
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Texto: Fernando Bisan | Ilustração: Paula Chimanovitch