Em meio a Serra do Mar, um lugar, uma cidade e um povo marcado por tragédias e transformações. Houve uma época que nem aparecia no mapa do Brasil… E nesse cenário, uma Vila com nome de um pássaro, a Vila Socó. Numa noite de 1984, o canto do pássaro é estagnado em meio a um mar de chamas, gritos de horror e uma fumaça transforma a noite em trevas. É o fim de muitas vidas, de muitos sonhos e planos.
Era aproximadamente 22h30 do dia 24/02/1984, quando moradores da Vila Socó (atual Vila São José) em Cubatão/SP, perceberam o vazamento de gasolina em um dos oleodutos da Petrobrás que ligava a Refinaria Presidente Bernardes ao Terminal de Alemoa.
A tubulação passava em uma região alagadiça, em frente a vila constituída por palafitas. Na noite do dia 24, um operador alinhou inadequadamente e iniciou a transferência de gasolina para uma tubulação (falha operacional) que se encontrava fechada, gerando a super pressão e ruptura da mesma, espalhando cerca de 700 mil litros de gasolina pelo mangue. Com a movimentação das marés o produto inflamável espalhou-se pela região alagada e cerca de 2 horas após o vazamento, aconteceu a ignição seguida de incêndio. O fogo se alastrou por toda a área alagadiça superficialmente coberta pela gasolina, incendiando as palafitas.
O número oficial de mortos é de 93 pessoas, porém algumas fontes citam um número extra oficial superior a 500 vítimas fatais (baseado no número de alunos que deixou de comparecer à escola e na morte de famílias inteiras sem que ninguém reclamasse os corpos), dezenas de feridos e a destruição parcial da vila.
Trinta anos depois dessa noite de terror na Vila Socó, um sobrevivente, Lourimar Vieira: migrante do Piauí, ator, professor, diretor de teatro e morador do bairro desde 1979, lembra das explosões, dos gritos de horror e pavor. Lourimar começou a correr com medo de que tudo fosse pelos ares, “eu corri para alcançar alguma carona e chegar a salvo em outra cidade, minha família já estava longe, a salvo.”
Ele venceu a tragédia e hoje conta essa história com uma emoção ainda presente e com orgulho de suas conquistas, como a fundação do Teatro do Kaos. Para Lourimar o teatro é ”uma das melhores invenções do ser humano…melhor que o avião, salva vidas, teatro é vida”. O grupo Teatro do Kaos tem em sua formação outros sobreviventes da Vila que hoje tem sua sede própria na cidade do antigo cenário de horror.
O escritor e poeta santista Marcelo Ariel, era vizinho de bairro na época. O pequeno menino que contemplou o caos, relata hoje “nenhuma tragédia é compreensível”. Marcelo transforma a realidade dessa cidade, em poesia erudita de visões infernais. Ele faz parte da experiência artística que ajudou a transformar esse drama em superação, força e solidariedade.
“Corpos em chamas se atiram na lama
mulheres e crianças primeiro
caranguejos aplaudem nossa Nagasaki
bebê de oito meses é defumado
enquanto Beatriz
agora entende o poema derradeiro
Beatriz mãe solteira antes de morrer deu um inútil pontapé na porta
No ar
gritos mudos
a noite branca da fumaça envolve tudo
alguém no bar da esquina
pensa em Hiroshima
nas vozes
Horror e curiosidade acordaram a cidade
se misturando
dentro do inferno olhos clamam…”
(Trecho da prosa poética de Marcelo Ariel)
Com um grande parque industrial, Cubatão enfrentou a ameaça constante da poluição. Na década de 1980, foi considerada pela ONU como a cidade mais poluída do mundo. Contudo, com a união de indústrias, comunidade e governo, a cidade conseguiu controlar 98% do nível de poluentes no ar. Por isso, em 1992, durante a Eco-92, recebeu da ONU o título de “Cidade-símbolo da Recuperação Ambiental” que graças a ação incansável de moradores e artistas supera a antiga visão de símbolo apocalíptico. Hoje o Guará-vermelho faz parte da paisagem, e a antiga Vila Socó já libertou seus pássaros, assim como seus medos.