Barretos, 1913. A cidade cumpria todos os requisitos para a instalação de um frigorífico – estava próxima à linha férrea e possuía enormes pastagens em seu entorno. Ali, um grupo de ingleses estabeleceu a Cia. Anglo Pastoril e inaugurou a vocação da cidade.
Desde então, Barretos tornou-se ponto de encontro de peões que traziam boiadas de Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais. Carregar tanto boi pela estrada é trabalho pesado, e a tarefa de alimentar os trabalhadores em trânsito nasceu junto com o ofício.
“Quem vai queimar o alho?”
É assim, na gíria à moda tropeira, que se pergunta quem é o responsável pela refeição dos viajantes. O cozinheiro é respeitado no grupo, e só ele pode mexer ali, na cozinha da estrada. Na véspera, deixava o feijão cozinhando a noite toda e, no dia seguinte, recolhia a carne, fazia o café e chamava os peões. Saía na frente para preparar tudo. A comitiva seguia o caminho pouco tempo depois.
Quando o “ponteiro” – peão à frente da boiada – avistava o cozinheiro, tocava o berrante para avisar que o almoço seria servido em breve:
– O berrante era o celular do peão, era a tecnologia da época. Cada toque de berrante tem uma mensagem.
Quem conta a história dessa tradição é Dorival Gonçalves, que coordena há mais de 50 anos a competição que premia a comitiva que prepara a melhor refeição típica tropeira: arroz carreteiro, feijão tropeiro, carne serenada e paçoca de pilão. Com direito a cafezinho!
Dorival é um apaixonado pela cultura boiadeira. Filho de tropeiro, começou a “puxar boi” com o pai aos 12 anos e até hoje carrega o compromisso de levar adiante os modos da estrada. Montou em sua casa um verdadeiro museu, onde dispõe minuciosamente as peças que juntou em suas andanças, todas cheias de significado: enquanto percorre a coleção, é capaz de contar a história de cada uma delas. Em uma das salas, montou uma cozinha tropeira com todos seus utensílios – no centro brilha a “trempe”, fogão dobrável no qual as refeições são preparadas.
A tradição mora nos detalhes
Na estrada, tudo deve se encaixar perfeitamente. O fogão, todas as peças e os mantimentos devem caber nas bruacas, compartimentos de couro que são carregados no lombo das mulas. “Guardar tudo é parte da ciência do cozinheiro, uma panela vai dentro da outra, uma lata dentro da outra”, explica Dorival. “Já vi comitiva chegando com bruacas enormes, mas qual é o tamanho do animal que vai aguentar isso aí?”, conta rindo. Sobre os animais, Dorival brinca: “De burros não tem nada. Só é preciso paciência, com o tempo vão ficando traquejados, já sabem onde podem passar sem esbarrar as bruacas”. A trempe e os utensílios são responsabilidade dos participantes e, na competição, não é admitido plástico. “As canecas e pratos são de ferro agate, pra não quebrar no caminho. Não dá pra carregar louça, né?”
Charque, suor e lágrimas: a competição
Barretos é reconhecida nacional e internacionalmente pela tradicional Festa do Peão. E é dentro do Parque do Peão, complexo gigantesco que abriga a festa, mais especificamente no Rancho Ponto do Pouso, que acontece a prova da “Queima do Alho”. Ao todo, 22 comitivas, entre as tradicionais e as mais jovens, participam da festa. Cada um recebe os mesmos ingredientes. Cabe a cada competidor conquistar os jurados com seu tempero. O que predomina no cardápio é o charque, batido na faca, à moda tropeira. “É usado no arroz, no feijão também vai. Na estrada não tem geladeira, por isso usamos a carne salgada.” O coordenador da competição explica que o tempo não é fator determinante, a maioria das comitivas está treinada e cumpre o tempo. “Mas tem peão caprichoso, viu? A gente logo vê quando o cozinheiro é lambão, deixa tralha suja, tudo espalhado. A organização e a limpeza contam pontos também.”
Apesar da disputa ser acirrada, Dorival considera a Queima do Alho uma grande confraternização. A tradição que está prestes a ser tombada como patrimônio histórico e imaterial brasileiro. “É uma brincadeira entre os peões, para ver quem cozinha melhor, uma reunião para contar ‘causos’, histórias da estrada. É gostoso, gratificante. É bonito!”
Alimentando o público
Em Barretos, fomos recebidos por João Andrade, que há mais de 10 anos prepara o cardápio típico em festas e eventos sociais. São nessas oportunidades que a maioria das pessoas pode provar os pratos tradicionais dos tropeiros – nas competições não é possível atender o grande público com as refeições, apenas convidados podem entrar no recinto onde acontece a prova.
Andrade aprendeu o ofício com Antonio Roberto Esteves, da Comitiva Santo Antônio, vencedora de algumas edições da Queima do Alho. Fomos conhecê-lo no balcão da “Casa do Pintor”, tradicional loja barretense onde atende há mais de 50 anos. Pergunto aos cozinheiros qual é o segredo da Queima do Alho. “Não tem segredo, é uma cozinha simples. O segredo é o amor”, afirmaram em coro, com um sorriso dissimulado de canto da boca.
A disputa deve ser mesmo acirrada, pois a receita ninguém quis dar!
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Texto e foto: Aline de Castro