Existem muitas formas de ser guiado em um passeio. Nesta visita a Cruzeiro, fui acompanhada pelo senhor Sebastião Pinto. Aos que reconhecerem o nome já tranquilizo: não se trata de nenhuma experiência sobrenatural (apesar da curiosidade ocorrida em frente ao cemitério municipal, que contarei mais adiante).
Estive com a estrela da era de ouro do rádio brasileiro por meio de suas histórias registradas no livro “Nas esquinas do tempo mora a saudade”, em que estão reunidas crônicas cheias de personalidade, reveladoras de visões da cidade que somente quem vive e ama poderia reconhecer.
Pois bem, cheguei a Cruzeiro de mãos dadas com alguns textos selecionados e me coloquei a descobrir detalhes da cidade. Primeiro destino: Rua Sete de Setembro.
“O visitante, ou mesmo o cruzeirense distraído que olha a cidade até onde a vista alcança, não percebe que cada rua reflete uma paisagem. Uma fisionomia própria, enfim, uma identidade que a difere das outras ruas. As ruas são irmãs, porém, cada uma possui uma alma e um destino diverso. A Rua Sete, que vale por sete ruas, é um exemplo. É uma rua diferente. A extensão de sua característica se sobrepõe ao prestígio das outras ruas. É a mais central. A mais longa e exuberante na sua iluminação à mercúrio . Ela é por assim dizer uma rua sem princípio. Uma rua sem fim.”
A grandeza descrita no texto descortinou-se assim que o ponto inicial da via, que marca a Rua Dr. Celestino. Percorri toda sua extensão até ultrapassar a placa azul que delimita o início da Rua Sete. A partir de sua outra extremidade, observei como passado e presente se confundem no calçamento da rua, entre asfalto e paralelepípedos.
O segredo de um bom passeio é o deslize da rota original. Naquele momento, fui seduzida pelas placas que indicavam o caminho do Morro do Cruzeiro. Quando já julgava estar perdida, dei de cara com a praça circular onde está erguida a esguia cruz de concreto. E que vista! O centro urbano com a retaguarda protegida pela Serra da Mantiqueira, mais grandiosa do que nunca.
Ao observar tanto céu, me lembrei da crônica que conta a história do primeiro avião que desceu em Cruzeiro: “Manhã ensolarada de seis de setembro de mil novecentos e vinte e dois. Como vai longe, como vai longe. Soa longínqua e quase imemorável essa hora empoeirada do velho relógio do passado. A cidade acordou agitada pela curiosidade e curtindo um desejo coletivo: assistir a aterrisagem do primeiro avião em nossa terra. E como se isso não bastasse, o aparelho voador era pilotado por uma Eva, de nervos de aço, Anésia Pinheiro Machado. Sim, por uma moça aparentemente comum! Nascida numa rua comum de Itapetininga, lá naquela região comum do interior de São Paulo”. Pena que a história termina com um acontecimento trágico, como o leitor pode conferir clicando aqui.
Seguindo em frente, decidi conhecer o lugar em que se passam algumas crônicas inspiradas na celebração do Dia de Finados. Dia de sol e calor, não pude observar o tradicional clima chuvoso narrado por Sebastião Pinto, que deixa as ruas molhadas e os paralelepípedos reluzentes. Fiquei ali por alguns minutos a observar o local e a imaginar a viúva jovem que prometeu ir ao cemitério três vezes por semana e plantar um canteiro de amor-perfeito sobre a sepultura do falecido marido, e que no cemitério se apaixonou por um outro viúvo consternado.
Algumas fotos depois decidi checar as horas no meu celular e levei um susto: o aparelho me mostrava que a única rede de internet wi-fi disponível ali se chamava “Aguardando sua alma”. Eu heim! Nem tentei conectar.
Sigamos, rumo ao coração da cidade. Praça Nove de Julho, onde em 2015 aconteceu o Circuito Sesc de Artes. Ali tentei localizar o relógio que havia parado no tempo, “alheio aos constantes movimentos das coisas vivas, estático. Marcando apenas, inexplicável e indefinidamente uma hora errada”. Em vão. Provavelmente, após não mais responder ás tentativas de reanimação, foi definitivamente extinto do local.
Em busca da última parada, a Igreja Matriz, perguntei a um homem que conversava com o vigia da prefeitura onde ficava a igreja. Ele me explicou: “Esta rua aqui é a quatro, conta até a sete e fica lá”. Ali, além de me colocar no rumo certo, reconheci a tradição local de nomear as ruas de acordo com uma sequência numérica paralela, que ali no centro se estende a partir da rua dois. Não pude deixar de me lembrar do texto dedicado à Rua 1 – ‘Uma rua cheia de mágoas’. “Rua que, por estranhos desígnios durante longos anos, pagou por um crime que não cometeu. E até hoje, o fantasma do passado ainda aperta o seu coração. Eu já explico: por reflexo do Bairro do Norte, a Rua Um, injustamente passou a ser batizada ‘rua do pecado’. Simplesmente pelo fato de ser vizinho do Bairro do Norte (…) Realmente, naquele bairro, em tempos que já vão longe, fervilhava a vida boêmia da cidade”.
Voltemos ao roteiro! Descendo pela rua de número sete, alcancei a igreja, onde Sebastião Pinto retratou com palavras a “Novena das terças-feiras”: “O sino, às terças, plange diferente. É alegre, festivo. Ele sabe que à noite, a Igreja estará crivada de gente. De gente para oferecer um pouquinho de si, e pedir muito à Santa Milagrosa! Os ônibus da empresa São José cruzam as ruas, apinhados. Eles vêm de todos os pontos cardeais das vilas e transportam alegria, promessas, problemas, decepções, e sobretudo, esperança.. A Praça Dr. Antero Neves Arantes se faz minúscula. Pudera. Quase todos os devotos da Santa aguardam ali o início da novena”.
Com esta imagem, encerro o relato da visita a Cruzeiro com a sensação de ter experimentado um pouco dos afetos guardados por quem vive na cidade, por meio das palavras de um apaixonado por sua terra.
O HOMEM DO RÁDIO
Sebastião Pinto nasceu em 28 de novembro de 1912 numa fazenda em Pinheiros, localidade distante 13 quilômetros de Cruzeiro. Ainda criança mudou-se com a família para a cidade, onde foi alfabetizado no Grupo Escolar Arnolfo de Azevedo. Aprendeu desde cedo a decorar poesias e canções e na juventude decidiu aventurar-se no Rio de Janeiro, onde começou a carreira como cantor e ator de circo. Depois de uma longa trajetória estabeleceu-se como cantor na época de ouro do rádio brasileiro. Na década de 40 não aguentou a saudade e retornou a Cruzeiro, onde ‘representou por 44 anos o papel de comerciante’ na Cinelândia Modas, enquanto se realizava entre palavras e canções. Ele costumava a dizer que gostaria de viver duzentos anos com direito à prorrogação e é exatamente esta a intenção do site sebastiaopinto.com.br, fonte para as pesquisas e a realização deste trabalho.
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Texto e Fotos: Mariana Krauss