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A casa da família Trindade

Logo na entrada, a mensagem “pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte” sinaliza o espaço, localizado na cidade de Embu das Artes, que de portas abertas recebe a todos com a arte da família Trindade distribuída em cada canto.

Ao chegar ao Teatro Popular Solano Trindade, a sensação é a de estar em uma grande casa, com porta retratos de entes queridos e recordações da história de uma família que carrega a arte do povo negro para diversos lugares, alguns recheados de consoantes em seu nome. Uma sinuosa cadeira de palha, ao lado de um banco com potes de tinta e pincéis, revela o processo de criação da mais recente obra da matriarca da família. Enquanto aguardo-a sentada no sofá, me vejo rodeada de quadros com cores e expressões inquietantes, um simpático cachorrinho entra para me dar as boas-vindas, mas logo ouço gritarem seu nome, então ele vai embora, como uma criança quando ouve o chamado de sua mãe.

Pouco depois sou recebida pela fundadora do Teatro, que prontamente me apresenta suas obras e os prêmios que recebeu em seu nome, e em nome do homem que tem sua profunda admiração – seu pai Solano Trindade. Uma das nomeações até despertam risos, ela conta que foi nomeada Comendadora, mas estranhou um pouco, imaginava que um Comendador seria um homem velho, barbudo e mal encarado. Dá para entender o estranhamento, afinal, ao alto dos seus 78 anos, Raquel sempre carrega um largo sorriso. Seus cabelos crespos e grisalhos, além de demonstrar seus ideais pela luta da preservação da cultura do povo negro, revelam a experiência de vida. Mas não deixou para trás tudo que viveu, bastam alguns minutos de conversa para perceber que conserva uma memória que provoca inveja em qualquer estudante em época de vestibular.

Ela conta a vinda de sua família para Embu, mencionando nome e sobrenome das pessoas que fizeram parte de sua trajetória. E não esquece nenhum detalhe. “Meu pai nasceu em Pernambuco, no Recife, eu também. Minha mãe nasceu na Paraíba. Nós fomos para o Rio de Janeiro, eu tinha oito anos. Meu pai me registrou como carioca e criou o Teatro Popular Brasileiro, onde minha mãe ensinou todas as danças. Minha mãe era terapeuta ocupacional, ela trabalhou com o Dr. Anísio da Silveira no Museu da Imagem e do Inconsciente e ensinou quando meu pai criou o grupo. Foi junto com o sociólogo Edison Carneiro e minha mãe Maria Margarida da Trindade.”

Antes de chegar até a cidade moraram em Duque de Caxias, onde faziam grandes festas na sua casa. Também viveram na antiga Tchecoslováquia, quando dançaram por toda a Polônia. Até que um dia vieram fazer um espetáculo em São Paulo e conheceram o escultor Claudionor Assis Dias. Ele os convidou a conhecer o lugar que deslumbrou Solano Trindade. “Era tudo mata, esse rio tomava a rua toda. Esse rio que está fechado agora. Tinha a cachoeira, tem, mas está poluída. Antes era muito limpa. Ai meu pai falou: ‘Isso aqui é um Oasis e eu vou ficar aqui’”, lembra Raquel.

Desde então, a família Trindade fez da cidade sua casa. Pode levar a expressão ao pé da letra. A visita não se limitou às paredes do Teatro Popular Solano Trindade, Raquel me apresentou sua casa, que fica ao lado do espaço. Uma simpática casinha de pau a pique, onde morava antes, e o sobrado onde mora atualmente. No seu quarto tem uma varanda, onde conta que pode ver todo o movimento da rua. Mesmo assim sente saudades da antiga casa, que agora está com a estrutura comprometida.

Raquel me convidou a conhecer a cachoeira da cidade. Antes de sairmos ela perguntou: “Você aguenta caminhar um pouquinho?”. Na hora estranhei, mas depois percebi que meus vinte e poucos anos perdem para a vitalidade da mulher que se intitula uma Fênix. “Eu caio, mas logo levanto!”, contou enquanto caminhava pelas ladeiras da cidade. Quando me apresentou a cidade repetiu a mesma cerimônia que fez quando me recebeu em sua casa e no Teatro, mostrando seus quadros, lembranças de entes queridos e fazendo questão de me apresentar as pessoas.

Por onde passava cumprimentava todos, isso porque disse não conhecer tantas pessoas como antigamente – “Agora que a cidade cresceu tem muita gente que não conheço”, contou. Então me levou até o Restaurante Municipal, onde tem um quadro seu. No Centro Cultural Mestre Assis do Embu, onde também tem sua arte, e até uma escultura de um de seus ex-maridos. Bonita e charmosa como é, dividiu seu amor oito vezes, “Meu coração é grande”, disse Raquel. Como o nome do centro cultural antecipadamente revela, as exposições contam com a memória de Assis espalhada em forma de arte. O título de mestre foi atribuído a ele não só por suas obras, mas também pela contribuição com a difusão da arte na cidade, já que foi o fundador da Feira de Arte e Artesanato de Embu das Artes. Atualmente pessoas de todo mundo reservam seus domingos para passear pelas barracas, sob a sombra das árvores, desvendando a arte que é produzida sobre o olhar de quem transmite sua bagagem cultural.

Raquel riu ao ver as roupas de Assis expostas em um armário de vidro. Lembrou que ele contava que um dia os homens seriam extintos e as pessoas só conseguiriam mostrá-los às crianças em museus, dentro de vitrines. “Agora é ele que está aí, numa vitrine”, contou apertando os olhos em um de seus largos sorrisos.

Assim fomos até a cachoeira. Conduzidas por “Bom dia?”, “Como vai seu filho?”, “Como tem passado?”, “Que bom vê-la!”… e a cada cumprimento me apresentava: “Essa moça é do Sesc, eu estou mostrando a cidade pra ela”.

Mas nem sempre foi assim. Quando sua família chegou à cidade, em 1961, a recepção não foi tão calorosa. “Primeiro estranharam a gente a ponto de um morador, que eu não digo o nome porque a filha dele é maravilhosa, jogar o carro em cima da gente, porque não queria negro no Embu. Mas depois passou, aí nos adaptamos muito bem e hoje a cidade nos acolhe com muito carinho.”

Quando trouxe a família para conhecer a cidade, talvez Assis não pensasse que fariam daqui um berço da cultura afro-brasileira. Mas com a determinação de Solano Trindade, representada por herdeiros de sangue filhos, filhas, netos, netas, bisnetos, bisnetas, e também por quem foi acolhido como filho de coração, até hoje a família perpetua o legado que Solano Trindade profetizou:

– Estou conservado no ritmo do meu povo, me tornei cantiga determinada e nunca terei tempo para morrer.


O EMBU E SUAS ARTES

Muitas das pessoas que vão a cidade de Embu das Artes são atraídas até lá pela popularidade da tradicional Feira de Arte e Artesanato, principal atração turística da cidade. As ruas do Centro Histórico do Embu ganham cores, texturas, sabores e sons, com quase 600 expositores, entre barracas e estabelecimentos fixos. Quem visita o lugar encontra uma variedade de artesanatos, pinturas, esculturas, bijuterias, móveis restaurados, roupas e a gastronomia, que vai de pratos da tradicional cozinha brasileira até a culinária argentina, japonesa, suíça e alemã.

Há ainda músicos e performistas se apresentando em diversos pontos do centro, antiquários e as famosas plantas ornamentais trazidas pelos imigrantes japoneses na Feira do Verde, também localizada no Centro Histórico.

A Feira de Arte e Artesanato foi fundada em 1969 por Claudionor Assis Dias com a participação de artistas como: Sakai, Solano Trindade, Vicente Cândido, Raquel Trindade, Antenor Carlos Vaz, Azteca, Ester Rubakov, Cícero Teixeira, Nazareth do Embu e muitos outros que faziam parte do movimento artístico da época.

Raquel Trindade, 78 anos, fundadora do Teatro Popular Solano Trindade, relembra que a feira foi fundada para preservar o movimento cultural da cidade: “Papai [Solano Trindade] só participou, quem fundou foi o Assis. Quando nós chegamos aqui em 61 fazíamos tudo aqui pela praça, mas não era nada organizado.”.

Assim a Feira de Arte e Artesanato, criada há 46 anos, resiste até hoje sendo uma das maiores feiras a céu aberto da América Latina. Segundo o prefeito, foi a Feira que transformou os casarios antigos em restaurantes e antiquários, e fortaleceu através do tempo, a marca Embu das Artes, atraindo anualmente cerca de um milhão de turistas para a cidade.

A maior concentração de expositores e visitantes acontece aos domingos e feriados. Na região, também é possível visitar o Centro Histórico, com o conjunto jesuítico do século 17, o Museu do Índio, a Capela de São Lázaro, o Memorial Sakai, os calçadões e as vielas rústicas de Embu das Artes. A cidade oferece ao visitante uma viagem no tempo em um lugar que muitos não imaginavam que faria parte de São Paulo, a grande metrópole.

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Texto e vídeo: Juci Fernandes | Ilustração: Daniela Franbez

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