“Ah, você que escreveu isso? – muitas vezes a patroa falava. Depois rasgava tudo e mandava: ‘Vai catar o cocô do cachorro agora! Lá fora está cheio de sujeira dos bichos.’. Eu gostava dos cachorros, mais do que das patroas. Eu ia lá e limpava. Acabava, e já ficava por ali sabe, no jardim. Nem queria entrar mais na casa. Mas anoitecia e eu tinha que entrar.”
Por um bom tempo foi assim. As pessoas ao seu redor achavam que aquilo era bobagem, que ela era metida a escritora, que tinha preguiça de trabalhar e devia fazer algo que desse futuro. Mas Tula Pilar, moradora de Taboão da Serra, batalhou, insistiu e persistiu. Agora ela enche o peito para falar que é poetisa, dançarina, escritora e agitadora cultural. Mas depois de ter arrebentado os grilhões ela não para por aí: “Eu quero ser cantora, mas por enquanto como poetisa, escritora eu to muito feliz com esse título”. Para quem antes achava que não era nada nesta vida, receber aplausos quando mostra sua arte é como se recebesse um troféu.
Ela pode estar no perrengue que for, mas um sorriso no rosto não falta. Fala tudo o que pensa. Escreve sobre o que toca seu coração. E não se deixa intimidar. Mas quando era jovem tinha que aceitar tudo. “A gente trabalhava de babá, ia com as pessoas para o lugar e não podia entrar. ‘A moça fica lá fora’. Tinha que ficar lá, como dizia minha mãe, parecendo um dois de paus, sentada que nem besta. Tinha que ficar ali esperando a patroa comer com as crianças. Eu penso que hoje dói na gente saber que teve essa situação, ficava sentadinho esperando, com fome. Às vezes elas se esqueciam de trazer coisa pra gente comer”, lembra Tula.
Agora ela é convidada para declamar suas poesias e não tem olho torto que a intimide. “Eu vou! Estão me convidando! Estão abrindo as portas e eu entro lá. Me dá licença! Estou entrando, fui convidada”, fala cheia de orgulho.
Sempre gostou muito de ler, só não esperava que uma de suas leituras iria refletir como um espelho. O Quarto de Despejo, livro de Carolina de Jesus que, como um diário, conta os detalhes da vida de uma mulher negra, pobre e favelada, tocou Tula pela semelhança com sua história. “Quando eu li aquele livro falei: meu Deus coitada. Igual a mim” Tula Pilar é uma Carolina.
As semelhanças são muitas, são mineiras, viveram uma vida muito pobre, tiveram três filhos um de cada pai, numa época em que a mulher negra era tratada com muita humilhação. “Falavam muito antigamente ‘essa negra preta feia’, mas na hora de esquentar o corpinho com ela, ela servia né?! Tem uns pais que fazem bem isso. Não era um homem pobre, era um empresário, viu aquela negrinha passar, gostou e se refestelou com ela. Mas quando ela chegou com a criança no braço, simplesmente deu um pé nela”.
No ano do centenário de Carolina (2014) fez o poema “Eu Sou uma Carolina”, que virou performance, em sua homenagem. “Essa patroa rasgando minha poesia. Esse homem que me assediava como assediava ela, e ela sempre falava não. Fugia e quando ela passava de madrugada os caras a assediavam. E esse assédio que eu sofria enquanto estava ali na necessidade, porque o cara achava que eu ia aceitar dormir com ele porque estava passando fome com as crianças. Como os três filhos enfeitavam a vida dela e aliviavam suas dores, as mazelas da vida. E ela sempre com a Vera Ionice, andando juntas pra lá e para cá. Eu sempre com a Dandara andando pra lá e para cá. Essa coisa de eu por o lenço, me inspirei muito na minha mãe, porque muitas vezes eu vi minha mãe ali também. Ela passou tudo isso e foi muito pior”.
Assim Tula mostra sua arte e mantém viva a memória de Carolina. Encontra na força da sua arte o sustento de seus ideais. Ela fugiu da casa da patroa e se libertou fazendo das palavras suas armas. “A poesia pode libertar, ela pode mudar a sociedade, mudar o mundo. É dessa forma que eu acho bonito quando chamo atenção, incomodo. Eu fico observando, se a gente incomoda é porque é muito chato ou porque ele é bom poeta, muito bom músico, muito bom qualquer coisa”.