Percorrer 850 quilômetros no lombo de uma mula não é para qualquer um. Mas motivação não faltou para um grupo de homens decididos a percorrer o interior paulista em um trajeto que separa as cidades de Tanabi e São Vicente. Nessa empreitada, os 31 aventureiros da região de São José do Rio Preto tinham preocupações básicas, como por exemplo, onde dormir, o que comer, como lidar com a tropa e as intempéries do tempo. Mas as dificuldades não ofuscavam o brilho nos olhos do grupo que desejava, no ano 2000, celebrar os 500 anos do descobrimento do Brasil à moda dos nossos antepassados, revivendo os costumes campeiros da época do “transporte elegante das boiadas”.
Para contextualizar a aventura dessa comitiva, vamos voltar um pouco no tempo. Em 1913, na cidade de Barretos, foi inaugurado o primeiro matadouro-frigorífico do Brasil. A partir dessa data, Barretos se tornou a Meca das comitivas de transporte de boiada, que desde então, passaram a percorrer diferentes rotas para levar os animais para o abate. Em um momento histórico ausente de modernidade, a cultura campeira viveu o seu auge na primeira metade do século XX, marcada por homens simples e valentes, que não mediam esforços diante da difícil tarefa de transportar o gado por longas distâncias munidos apenas de um berrante.
O transporte da boiada era feito no lombo de burros e mulas, porém com muita elegância e festejo. Nas paradas para o descanso não faltava o melhor da comida típica regada à moda de viola e Dança do Catira, que por vezes alegravam as festas de São João e folia de reis. Mas toda essa cultura foi se perdendo com o passar do tempo. Muito em função da chegada do progresso e os adventos das rodovias pavimentadas, dos caminhões de transporte de gado e, principalmente, da atual incidência da cultura norte americana sobre os costumes rurais brasileiros. Hoje, os mais jovens confundem o cowboy de rodeio com os verdadeiros boiadeiros do sertão do Brasil.
É aí que entra os primórdios da Comitiva Boi Soberano, um grupo de homens tenazes, apaixonados pela cultura do campo e decididos a desamericanizar o pouco que restou dos costumes rurais no interior de São Paulo. No lugar dos bois levavam muita força de vontade e o desejo de resgatar as tradições boiadeiras, começando com uma viagem a Barretos para a participação na maior festa do peão do mundo.
Já entrosado, o grupo passou a buscar maiores desafios. Após um ano de planejamento a jornada de 850 quilômetros com destino a São Vicente teve início. Em 31 de março de 2.000, os muladeiros partem rumo ao litoral paulista com a missão de colocar em prática os antigos costumes. Todos trajaram-se conforme as tradições, assim como arriaram suas mulas e burros com tralhas repletas de argolas reluzentes, capas estilo “ideal”, porta capas de vaqueta e laços de couro na garupa. “Procuramos reproduzir, com a fidelidade possível nas atuais circunstâncias, uma comitiva de transporte de boiada da primeira metade do século vinte”, relata Aguinaldo José de Góes, um dos fundadores da comitiva, que garante que as refeições durante a viagem eram feitas na trempe, um fogão à lenha portátil onde o cozinheiro preparava o arroz de carreteiro e o feijão gordo em panelas de ferro e a carne assada na chapa, servida com paçoca de carne, em pratos esmaltados de ferro-ágate.
Sempre com o pavilhão nacional à frente, por vezes ao som do berrante, os tropeiros passaram por 23 municípios, num trajeto mesclado de rodovias, florestas, riachos e paisagens exuberantes. A receptividade dos moradores surpreendeu a comitiva, que em várias ocasiões foi recebida com festas. Pelo caminho, outras comitivas faziam questão de guiar a passagem do grupo pelas ruas das cidades. Até um coral foi organizado na cidade de Sorocaba para recepcionar a comitiva com sucessos do cancioneiro caipira.
Após 18 dias de cavalgada e 1 de descanso, o prefeito de São Vicente recebe os muladeiros do noroeste paulista em uma cerimônia exclusiva. Com o objetivo de reproduzir o transporte elegante das boiadas, de reviver os costumes dos antepassados, de resgatar as tradições rurais genuínas e de valorizar as manifestações culturais do homem do campo, como as modas de viola, a dança do catira, a folia de reis e as festas de São João, a comitiva encerra sua jornada e retorna para casa com mais uma missão: dar um nome ao entusiasmado grupo.
O grupo foi intitulado então como “Comitiva Boi Soberano”, em homenagem à moda de viola “Boi Soberano” que tem por tema o peão de boiadeiro, cuja letra é de autoria do poeta e compositor tanabiense Izaltino Gonçalves. A moda ganhou fama na voz da dupla Tião Carreiro e Pardinho, ícones da música de raiz. Ainda ativo nos dias atuais, o grupo coleciona viagens e prêmios, entre eles o primeiro lugar no concurso da queima do alho de Barretos.
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Texto: Anderson Carvalho | Foto: Eliana Maciel