Ao longe é possível avistar o cruzeiro. Data de 1925, forjado em aroeira para marcar a fundação da Vila Carvalho, uma das corrutelas da Estrada Boiadeira do Taboado, no trecho que permeia a zona rural de Votuporanga. Assim como em todo o corredor estradeiro, instala-se ali uma paisagem bucólica, um elo quase perdido no espaço/tempo que contrasta com a moderna cidade que a compreende. A capela, as casas que conservam sua construção original, o olhar simpático e curioso que os remanescentes no povoado lançam aos forasteiros. Elementos que resistiram ao tempo e ao rolo compressor chamado progresso.
“História? Aqui tem muita história. Mas eu não quero saber de contar história, não” – me diz uma das moradoras ao negar minha investida para descobrir os causos do lugar. Esta relutância em revisitar memórias tem explicação plausível: como todos os povoados que surgiram na rota da Boiadeira, os habitantes da Vila Carvalho presenciaram a chegada de bandeirantes e tropeiros condutores de boiadas. Lá, as tropas paravam para descansar e se alimentar antes de seguir em frente. Esta passagem era frequentemente abalada por emboscadas promovidas por capangas de fazendeiros interessados nas cabeças de gado provenientes do Mato Grosso do Sul para os frigoríficos de Barretos. O próprio fundador da Vila, o Coronel Felício José de Carvalho, foi morto numa tocaia em 1929. O Coronel, assim como posseiros, fazendeiros, crianças e até indigentes, estão sepultados no Cemitério Boiadeiro, localizado a poucos minutos do vilarejo.
Para chegar até lá é preciso percorrer um confuso labirinto entre canaviais. Quando menos se espera, em uma das curvas surge um emaranhado de árvores, formando uma verdadeira construção arquitetônica natural. Estas paredes vivas lembram um santuário ou templo. Protegido no interior deste templo, delimitado por toras de madeira, encontra-se o cemitério.
Há mais de 70 anos nenhum corpo é enterrado ali. De todas as sepulturas, apenas a do Coronel Felício possui jazigo e identificação, o restante são sinalizadas por pilhas de tijolos, já revestidos de lodo. Há pouco menos de um mês, uma tempestade fez com que uma grande árvore viesse abaixo, exatamente sobre o túmulo do Coronel. Milagrosamente, o tronco foi apoiado por galhos e parou milímetros antes de atingir o jazigo e destruir a homenagem de mais 80 anos ao fundador da Vila Carvalho. A impressão que se tem, é que o incidente foi impedido por uma força não humana.
Influência sobrenatural ou não, o local esquecido parece reagir à chegada de visitantes. O ruído das árvores no meio do silêncio da zona rural é como uma conversa paralela intermitente. Espinhos de plantas rasteiras atacam os calcanhares desprovidos de proteção. Um cão nada amistoso surge, sabe-se lá de onde, latindo como um alarme apontando invasores. A sensação de hostilidade é intensa. É como se o lugar repetisse a frase que eu havia ouvido pouco antes: “História? Aqui tem muita história. Mas eu não quero saber de contar história, não”.
De fato, algumas histórias não precisam de narrador. Elas simplesmente estão ali e é possível vê-las e senti-las. O Cemitério Boiadeiro, a Vila Carvalho e cada quilômetro percorrido na Estrada Boiadeira do Taboado, têm o poder de nos transportar a um passado distante, que coexiste com o presente e nos permite (re)vivê-lo.
O Museu Municipal Edward Coruripe Costa de Votuporanga realiza passeios monitorados pela Estrada Boiadeira do Taboado. Agendamento e Informações pelo telefone: (17) 3422-4451.
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Texto e fotos: Jeff Santanielo