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Brotas do Nego do Braga

É, eu sei. A gente fala de Brotas e todo mundo espera ouvir uma história de música de viola ou então uma aventura de rafting, boia cross, qualquer coisa rio abaixo. Mas Brotas tem um apelo afetivo para mim. Brotas é o lugar da casa da mãe da Chris, a Lelena pros íntimos, a Lélis pros mais íntimos. Um lugar onde o tempo é outro. Onde eu vou para tomar café ouvindo histórias a tarde inteira. E era uma dessas histórias que eu queria contar sobre Brotas.

Então eu ligo e aviso: Lélis, passa o café que eu vou levar um bolo pra gente conversar.

Quando chego, ela resolve: Ah, então eu vou levar você pro meu primo Mauro que ele tem essas histórias assim de visões que teve, quando no meio do mato ele passeava, viajava, essas coisas…

A gente chega e é aquela intimidade de lugares onde todo mundo conhece todo mundo, os portões são abertos e a gente entra sem bater. Mas não tem ninguém. Lélis vai à casa ao lado e diz: Deixa eu ver se o filho dele está. Ela bate palma e diz: Aqui é tudo conhecido, tudo parente. Ali é filho desse, esse é meu primo, virando ali tem outro primo. Brotas era que nem uma provinciazinha pequeninha. Todo mundo era conhecido. Agora já cresceu bastante.

Vamos andando e entramos em uma outra casa. Mais uma vez sem bater. E ela diz: Aqui faz bolo, viu? Bolo recheado. A Lélis sai da casa com a Leninha, boleira. E eu pergunto: Leninha? E você, Lélis, é Lelena? Vocês me confundem!

Na rua, vem passando alguém e a Lélis diz: Olha o outro ali, oh. O Tijolo. Vou pegar esse aí.
Esse é meu amigo também, ela apresentando ele para mim.

Tijolo, o seu pai era contador de história, porque a Ida falou que era. Cê guardou as histórias dele, pra contar pra nós agora?

Ah, assim, é difícil…

 Como chamava seu pai?, eu pergunto.

Antônio de Almeida, mas ninguém conhecia. Como eu. Ninguém conhece por José Antônio, conhece por Tijolo, e o meu pai era conhecido como Nego do Braga. O meu pai, cê sabe que ele entregava leite na rua. Os Bragas eram donos dessa chácara toda ali que você vê da igrejinha pra lá. Aquela parte toda era dos Bragas e meu pai trabalhava lá, desde criança. Aprendeu trabalhar, entregava leite na rua, tirava leite. Aliás, eu também tirei leite. Isso aí, do pessoal mais antigo, todo mundo tem o que falar do meu pai.

A Lélis comenta: Ele tinha a risada mais gostosa desse mundo! Chegava gargalhando. Isso do tempo que vendia leite naqueles litrinhos de vidro.

Dali onde a Lelena mora ouvia a risada dele lá no Cruzeiro!, diz o Tijolo.

A gente conversando na calçada, um carro passa e buzina cumprimentando. Tijolo acena. Acho que já era o segundo carro a cumprimentar ele.

Quantas vezes meu pai estava chegando lá na chácara onde a gente morava e minha mãe falava “escuta, olha o bocudo do seu pai chegando!”. Quantas vezes! Tijolo continua contando: Então, todo pessoal antigo, e os novos também, se você perguntar todo mundo tem o que contar. O meu pai foi um cara muito ligado com o povo. Pra falar a verdade, ele foi mais da cidade que de casa!

Outro carro passa na rua e cumprimenta. O Tijolo responde: Oi, Palmiro!

Eu pergunto se eles moram na chácara dos Bragas ainda hoje.

Não, eu moro aqui agora. Nessa rua aqui. Eu sai de lá com 45 anos. Vivemos uma vida lá!

Quantos anos você tem Tijolo?

Eu? 74!

Nossa! Não parece!

Ele realmente não aparenta. Um negro alto, com alguns fios grisalhos. Eu diria 50, 55 anos.

É, 74 eu tenho!

Sabe outro que vai ter história pra contar do meu pai? O Carlinho Braga. O Carlinho passava o dia com ele.

Ah é! Tanto que ele chamava o Carlinho de sinhorzinho, diz a Lélis. E continua: Você não quer ir lá no Carlinho com a gente, Tijolo?

Eu tenho que ir abrir o boteco. Se não eu ia. Ele responde.

A gente se despede e continua andando pela rua e logo vai entrando em mais uma casa.

Com licença, Sueli. A gente veio falar com seu marido.

Conversa vai, conversa vem e eu descubro que estou na casa do Zé Roberto Rebecca. O homem que já foi conhecido como o mais bonito da cidade. Ele e o Zé Farsoni da Areia que Canta que eram os galãs da cidade. Mas eu estou encantada com a história do Negro do Braga e logo pergunto:

Você conheceu o Negro do Braga?

Nossa senhora!, exclamam ele e a mulher quase ao mesmo tempo.

Vou contar um caso que aconteceu comigo, continua ele. A gente ia roubar abacaxi. O Braga tinha uma lavoura de café e eles plantavam abacaxi no meio. Então, naquela época, tinha a estrada de automóvel que ia pro espraiado e a estrada de carroça. Um caminho fundo. Bem fundo. Nossa, acho que tinha um barranco de uns cinco metros de altura. Ali foi minha infância, que a gente brincou toda a vida ali, aqui na Santa Cruz, dentro do rio. Então, a gente marcou de ir na plantação de abacaxi. Fomos eu, Zé Carlos, o Arthur Felipe, João Silvio. Naquela época o Braga tinha quatro cachorros, daqueles tipo policial. Era uma fera aqueles cachorros. Nós pegamos uns três ou quatro abacaxis cada. Voltamos pro barranco. Mas não sei quem que avisou lá. Conclusão. Veio o Nego do Braga e o Lourival e mais dois. Dois par e cada par tinha dois cachorros. Fecharam nós no barranco. Risos altos. Fizeram a gente levar os abacaxis de volta lá na roça, eles com os cachorros atrás. Passamos o maior vexame!

Depois de um pouco mais de conversa, faltava visitar o Carlinhos Braga. Fomos andando até um sítio pequeninho, parte da grande propriedade dos Bragas, uma conversa ao som de pintinhos. Carlinhos conta que Nego Braga gostava muito de fazer brincadeiras com os outros, às vezes até brincadeira maldosa:

Ali embaixo tem até o chafariz, era a coisa mais bonita que tinha ali. Então o pessoal que vinha do sítio amarrava os animais ali, dava água ali e o Nego, que que ele fazia? Naquele tempo tinha formicida de tatu, que a gente falava, que era de matar formiga. Era veneno. Só que era um líquido gelado, gelado, gelado. E aquilo ali você espirrava um pouquinho num animal, ele ficava doido, saía correndo, saía pulando. Então que que ele fazia? Pegava um pouquinho, colocava na canequinha e ficava ali. Quando chegava um, ele esperava e espirrava um pouquinho. Aquilo o animal saía correndo e pulando e derrubava o cara.

Agora pensa nesse Negro do Braga, leiteiro de risada alta e gostosa, contador de histórias, traquinas de derrubar cavaleiro, capataz com cachorro bravo, caçador de capivara, e imagina de que ele tinha medo? Maria mole! Eu já vi gente com medos estranhos, medo de barata, medo de palhaço, mas medo de maria mole?! Dizem que faziam esse Negro correr três dias fugindo de maria mole.

Texto e Foto: Michelle Magrini