De um lado, Os Crespos, de São Paulo, representados por Lucélia e Joyce; do outro, o grupo Flor de Chita, da cidade de Catanduva, com Rafael, Lucas, Jéssica e Yara. Completando a roda, a Cia. Arte das Águas, de Ibirá, cidade que hospedava o Circuito naquele domingo dia 15 de abril, representados por Antonio Jr., Victor e Joice.
Pessoas distintas, de origem distintas, mas com a mesma paixão – a arte de representar. Atores, essas pessoas que encaram a cada apresentação um novo desafio e que conseguem sempre acrescentar uma nova sensação a cada apresentação. Com ajuda do acaso, do deus do teatro Dionísio ou por essas loucas coincidências da vida mesmo, o encontro planejado a principio entre dois grupos teatrais se deu com três. O que já era bom, ficou ótimo!
A PRAÇA É REALMENTE O LUGAR MAIS DEMOCRÁTICO DO MUNDO; QUER LUGAR MELHOR PRA GENTE FICAR SENTADO EM RODA, CONVERSANDO?
Eles por eles, sem interferências. Um grupo de jovens artistas que participou no Circuito Sesc de Artes no ano passado, um mais experiente, com mais anos de palco e formação em artes cênicas em uma das melhores universidades do país, que estava ali participando da edição de 2018, e um terceiro grupo, que batalha e cresce espetáculo após espetáculo, conquistando festivais e trilhando sua estrada. Ou seja, gente que circuitou, que está circuitando e que quer circuitar. Passado, presente e – quem sabe – futuro do Circuito. (Que coisa mais linda de se ver e ouvir!)
Rezando para que as baterias dos meus dispositivos não me deixassem na mão, fiquei sentada na roda entre eles, só jogando uma leve provocação de tempo em tempo. E aconteceu assim: cada companhia relatava suas necessidades, seu sistema de trabalho e organização, suas metas como artistas e sonhos a realizar.
Como vocês conseguem recursos? O que você quer dizer? O que te faz acordar cedo de manhã? Como você se sentiu quando escolheram vocês?
Não seria pouco falar dessas questões. Escutar tudo aquilo soltou longe minhas elocubrações filosóficas… fiquei imaginando quanta gente ainda não sabe a que veio, e quando entendem isso, precisam também conhecer as ferramentas pra chegar lá. Acredito que o teatro é a arte que te ajuda a achar algumas dessas respostas. Em algum momento, alguém jogou a questão na roda… afinal, qual é o seu sonho? (Você não precisa responder agora, mas pode levar a pergunta consigo pra refletir quando desejar).
Os Crespos sabem bem a que vieram e conhecem a mensagem que desejam passar. Você percebe, na hora que os vê, a vontade de trazer à tona assuntos que a sociedade prefere deixar de lado. Uma arte que faz denúncia, que instiga e que incomoda também (afinal este também é seu papel). Difícil não gostar de cara de pessoas tão interessantes e corajosas assim.
Um grupo com 13 anos de história, que trabalha bastante graças às leis de incentivo cultural e apoios de editais públicos. Os temas que escolhem refletem a ideologia dos seus integrantes: atores negros, que trazem histórias sobre preconceito, reconhecimento, representatividade, respeito, afetividades, etc. Escutei deles uma explicação clara de quem são, que resumo assim:
Se o mundo fosse um lugar mais justo, talvez o trabalho do grupo seria diferente, mas visto que vivemos em uma realidade cheia de preconceitos e que ainda temos que brigar por muitos de nossos direitos, a bandeira dos Crespos é sim a denúncia, o convite à reflexão e a defesa do negro em nossa sociedade.
Como disse Lucélia durante nossa conversa: “– Essa é a nossa bandeira”. Porque querendo a gente ou não, tudo nessa vida é política e o teatro não foge à regra. Nossas escolhas são uma posição política e Os Crespos fizeram a escolha deles.
Já o Flor tem características diferentes. Criado há cerca de três anos, o grupo nasceu de uma associação cultural e trabalha com foco na cultura brasileira, usando música em seus espetáculos. Eles têm uma queda pela literatura, pela brincadeira de rua, por estar bem em meio às pessoas. Constantemente se envolvem com textos e referências de grandes escritores, como por exemplo Guimarães Rosa, Ariano Suassuna ou Candido Rodrigues. São jovens, apaixonados pelo encontro, pelo diálogo, toda vez que os vejo é sempre uma delícia porque eles trazem aquela efervescência contagiante da juventude.
E esta juventude vem trabalhando e estudando muito, para se aprimorar mais. Dos estudos literários e das aulas de canto que fizeram, nasceram mais oportunidades e ideias. Entre pesquisas e canções, essa moçada ganhou a estrada. Viajaram trabalhando e participaram da edição de 2017 do Circuito Sesc de Artes.
As vezes dá pra viver de arte, outras vezes não… Todos os participantes daquela roda de prosa vivem profissões paralelas à do ator. Em um cenário social em que a arte acaba sendo vista como uma atividade menos importante por parte de instituições e muitas vezes pela própria população, o espaço conquistado a duras penas por esses profissionais é sim muito importante. Cada centímetro dele. O reconhecimento é vital para que continuem sendo artistas.
Já se perguntou o quanto o artista ganha? Até onde a arte que faz seu olho brilhar pode ser levada de graça para as pessoas, sem que o ator seja reconhecido financeiramente por seu trabalho? Essa é uma questão que foi bastante discutida, inclusive porque no interior o reconhecimento é mais difícil e acontece mais lentamente. Muitas vezes os atores se vêem obrigados a trabalhar gratuitamente, só pra poder ganhar espaço e conquistar visibilidade. Nem todos concordam com a prática mas é o que acaba acontecendo na realidade.
É comum no mundo do teatro que o resultado de um projeto de sucesso seja o caixa do futuro espetáculo e, entre um e outro, percebi que existe também um respiro, um tempo de recolhimento, de reflexão e de espera. Atores e atrizes são pais e mães, pessoas que também vão ao supermercado quando acaba a manteiga, que entram em fila pra pagar contas como todos nós.
O grupo local, o Arte das Aguas, foi fundado em 2009. O diretor do grupo, Antônio, é também o secretário de cultura de Ibirá. Ele conta como é difícil vivenciar os dois lados de sua realidade. em que é artista e deseja que os espetáculos sejam prioridade, e também secretário, devendo administrar recursos entre tantas necessidades. Em Ibirá foi difícil formar novos componentes para o grupo. Muitos pais ainda olham a profissão de ator com preconceito e não permitem que seus filhos se dediquem ao teatro. Porém, graças também ao trabalho que vem sendo desenvolvido, o teatro cresceu na cidade. Hoje o grupo relata que em todo espetáculo realizado em Ibirá os locais ficam lotados. O grupo define suas ações como uma luta diária de resistência. Ultimamente, tiveram uma experiência de encontro com suas raízes. Descobriram-se dentro da história do homem simples do interior, enxergaram na trajetória de um caipira forte e cheio de projetos a sua própria origem e cultura.
Depois de mais de uma hora sentados ali, percebemos que o Circuito tinha terminado, a Tássia Reis, que fechava a programação daquele dia, havia acabado faz tempo seu show e as primeiras peças de comunicação começavam a ser desmontadas. Hora de se despedir. Entre promessas de manter contato e dicas práticas, a roda se dispersou, mas fiquei com a sensação que ainda iria vê-los mais vezes, em outra rodas talvez; espero que também em outros palcos, circuitando nesse mundão afora, no lugar onde eles mais gostam – em meio às crianças, perto das pessoas, contando histórias pra gente se lembrar de sonhar.