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Um sábado no interior do Brasil

Na sombra boa de um caramanchão coberto de tumbérgias-azuis, há duas mesas grandes, retangulares, cercadas por crianças de todas as idades, sentadas em cadeiras ou na ponta dos pés, empunhando lápis de cor e tesouras sem ponta.

A turma do lápis é orientada pelos Urban Sketchers, desenhistas urbanos que se reúnem pra registrar cenas cotidianas das grandes cidades. Em Morungaba, de 13 mil habitantes, a ideia é fazer com que a molecada preste atenção nos elementos de sua paisagem natal. Me aproximo pra conferir alguns sulfites coloridos. Encontro palmeiras (como as da Praça dos Italianos, onde o evento acontece), um ônibus amarelo (como o do Sesc, parado desde cedo ali na frente), um carrinho de cachorro-quente (como o que acaba de estacionar atrás de um dos três palcos baixos, dispostos em forma de U, ao lado do caramanchão), adultos com bebês de colo (como os que, timidamente, começam a se apoderar do espaço público).

Na segunda mesa, Tico Volpato ministra a oficina de máscaras Low Poli — máscaras de papel em estilo poligonal —, e logo surgem coelhos conversando com ratos (ou gatos?) e cachorros. O razoável silêncio em que as atividades transcorrem surpreende. Os pequenos parecem à vontade entre os forasteiros.

Também sob o caramanchão, a Companhia EntreContos disponibiliza uma boa coleção de histórias em quadrinhos. Os interessados só têm o trabalho de pegar um livro e se esparramar numa das espreguiçadeiras e tapetes espalhados sem cerimônia em volta da banca.

Enquanto alguns desenham, outros constroem máscaras e outros ainda folheiam HQs, a loira Diny, uma das únicas mulheres ilusionistas do país, passeia pela praça com sua assistente em busca de pequenos grupos, diante dos quais realiza truques certeiros com cartas de baralho e outros objetos.

Os espectadores, vidrados, nem piscam — com exceção de um menino de seis ou sete anos, pardo e parrudinho, que dá seguidas estrelas ao redor do grupo, como se o estivesse envolvendo com um cordão invisível de feitiço capoeiro. Incômoda, uma pergunta se forma no vento da tarde: daqui a alguns anos, depois de passar pela máquina de moer talentos chamada Vida Adulta no Brasil, onde irão parar a coragem e a alegria desse menino?

Agora a Cia. Vagalum Tum Tum está em cena, e a plateia se acomoda em cadeiras de plástico pra assistir a Henriques, livre adaptação da trajetória do rei Henrique V de Shakespeare. Os atores convencem, e o público se deixa envolver até o fim pelas presepadas do príncipe e seus amigos Falstaff e Pistola. Antes de escurecer, Diny, a ilusionista, apresenta seu show de “quick change”, no qual troca de roupa várias vezes, numa velocidade delirante. É o momento Rede Globo do dia.

Então a equipe técnica do Sesc reposiciona as cadeiras na direção do palco central, e a divamente bela Luedji Luna, cantora e compositora baiana, desata sua voz de metal dilatado pela pacata cidadezinha paulista. Acompanhada do DJ Vitonez, das MCs Stéfanie e Dory de Oliveira, além do MC pelotense Zudzilla — todos negros —, seu show é bastante politizado. “Parem de nos matar!”, exige Luedji no intervalo entre duas canções. “A minha inspiração é preta”, diz Dory de Oliveira, depois de citar os nomes de Angela Davis e Elza Soares.

O público aplaude, grita e assobia. Algumas senhoras vão embora. Uma menina invade o palco e é recebida com carinho pelas MCs. Uma travesti pouco travestida — brincos de argola, vestido verde simples, cabelo descolorido preso no alto da cabeça e quase nada de maquiagem — dança sem alarde na companhia de um bêbado clássico de cidade do interior.

Mais tarde irão beber juntos, cantores e fãs recém-descobertos, no Bar do Fabinho, um maravilhoso boteco sertanejo erguido com largas ripas de madeira verticais. Das paredes internas pendem cabeças de vaca, violas sem cordas e ferraduras velhas. De vez em quando um cavalo amarrado no palanque da entrada enfia a cabeça pra dentro da janela e relincha com vontade — provavelmente pedindo um pouco de cerveja.

Por volta das 21h, soam na praça o trombone, o trompete e o banjo dos palhaços nada convencionais do Circo Fubanguinho, da Trupe da Lona Preta. É a última atração deste 30 de março de 2019. Felliniano como todo circo que se preza, deixa no ar desolado da noite brasileira um resto de esperança mesclado à nostalgia.

 

Texto: Fabrício Corsaletti
Foto: Kazuo Kajihara