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O reino é laico, mas eu sou do patuá

Essa galera do roteiro três é mesmo animadíssima! Uma turma que veio de longe, tem gente do Oiapoque ao Chuí. E todos gostam de uma boa prosa. Claro que, dentro do ônibus que leva os artistas, durante aquela quase uma hora de percurso do hotel, em Catanduva, até a cidade de Olímpia, o que prevaleceu foi a voz do contador de causos, violeiro e loroteiro (sim, todo contador de causos aumenta um conto de vez em quando, né?) Wandi Doratiotto.

O homem é tão bom de conversa, que fez a viagem toda sentado de costas, só pra olhar melhor seus interlocutores. Coisa de lobo mau quando encara a chapeuzinho: pra te ver melhor. Se a gente fosse até São Paulo, tenho certeza que ele ainda teria conteúdo até chegar à capital. Não que o Paulinho Freire ou o Mauricio Pereira ficassem atrás, os Três são bom demais mesmo, mas o Wandi estava particularmente inspirado e não dava muita chance aos colegas de ofício.

Entre conversas sobre longevidade e exercícios físicos, férias no interior, viagens pelo Brasil e o nome da cidade de Olímpia, chegamos à dita cuja. Um calorão danado, só os sergipanos do Imbuaça desfilavam pela praça imunes aos gracejos solares, entretidos no ensaio geral e pela expectativa de mais tarde.

Tudo pronto? Sim! Então bora começar!

As oficinas de autômatos teve fila de cara. Como é que o pássaro mexe as asas? Como é que eles fazem o cavalo andar? Toda criança que teve dúvida, pôde tirar a limpo a experiência de fazer seu próprio brinquedo de madeira. Me lembrei da obra de Carlo Collodi, da oficina do Gepeto, onde ele criou o menino de madeira. Em Olímpia, foram os meninos e as meninas que criaram os brinquedos, mas sem ajuda da fada azul; eles contaram com apoio do Coletivo Máquina Tudo, e dos pais, que, com muita boa vontade, também entraram na dança.

Teve criança que preferiu escutar uma história na intervenção de literatura, mediada por contadores que deixavam todo mundo muito à vontade para escolher os títulos. E teve também muita gente fascinada pela máquina de fotografar. O pessoal da Oficina do Olhar trouxe uma câmara-caixote, em plena era digital, que fez a alegria de muita gente que nunca tinha visto de perto como se fotografava antigamente. Por meio de um aplicativo, a foto em negativo é invertida, e a pessoa reconhece seu retrato na tela de um tablet, objeto muito familiar para a maioria dos presentes. O que mais gostei dessa câmara fotográfica foi o tempo do processo em si. A revelação, diferente de quase tudo na sociedade de hoje, não é instantânea, ela pede seu tempo. Não adianta apressar, reclamar, querer na hora. Igual bolo de fubá crescendo no forno. Você tem que saber a hora certa de tirar. Foto artesanal tem seu tempo de revelação, e isso pode ser até uma lição metafórica de vida: “Não apresse a foto, a imagem aparece no seu tempo”.

Você já viu vara de bambu dançar? Pois então, em Olímpia, o pessoal da Companhia Quick de dança fez os bambus dançarem e tocarem. A intervenção deles tomou conta de vários espaços da praça, e no final tinha muita gente dançando e participando do espetáculo. Foi uma participação crescente. Quem olhou desconfiado no começo, terminou a dança com faixas de panos na cabeça, ao som de vários instrumentos. De novo, a lição da foto tradicional cabe bem e se encaixa perfeitamente também aqui: tudo tem seu tempo, até pra ganhar a confiança das pessoas na praça. E olha que não é tão rápido confiar em uma pessoa que vem em sua direção com uma vara gigante de bambu, fazendo movimentos cambaleantes, né?

Mas vara vai e papo vem, e a dupla argentina da Cia. Trotamundos entrou em cena, e foi um encantamento geral: números de acrobacia circense, teatro e malabarismo! Em um velho baú, os dois artistas contaram uma linda narrativa, e o público também participou. Em algumas cenas, a artista dança com um paletó e um cabide, e por duas vezes eu poderia jurar que tinha um homem dançando com ela, tamanha a precisão de movimentos e suas expressões. A “mocinha” (eu e as crianças locais decidimos chamar a artista circense assim) estava dançando com outro e deixou o “mocinho” enciumado (de novo, assumimos a responsabilidade, essa alcunha é uma liberdade nossa). Toda uma narrativa divertida se passou depois, na tentativa de conquistar a mocinha, e no final, quando a dupla se despede colocando o cenário de volta no baú, deu uma vontade louca de entrar junto e ir embora com eles. As crianças também me apoiaram nesse pensamento, mas os pais não curtiram tanto assim nossa intenção artística. Tudo bem, um dia, quem sabe, seremos todos parte desse circo.

Três é bom chegaram, e os adultos e idosos se transformaram em crianças de novo. Tão gostoso ver o riso saindo espontâneo, os olhares de felicidade e o som das risadas tomando conta da praça. Sabe aquela expressão de dizer que a pessoa é a simpatia encarnada? Pois bem, esse trio é assim. Você se sente ligado a eles, com laços de intimidade. São personagens de um mundo superpeculiar, que a gente quer fazer parte também. As histórias das trajetórias que os três músicos relembram na praça nos envolveu completamente, fizemos coro nas músicas, virou programa de auditório; como diriam os próprios:  “E funcionou, funcionou, funcionou!”.

Pra fechar a noite em poesia e majestade, o espetáculo de teatro “Mar de Fitas, Nau de Ilusão”, do Grupo Imbuaça trouxe lindas canções e referências da cultura popular nordestina para Olímpia. Figuras de cordel, típicas, de fala rápida e afiada, divertida e leve. Como não amar? Canções que resumem os 40 anos de história desse grupo de teatro de rua foram apresentadas ao público. As referências ao nosso cotidiano nos fizeram gargalhar alto. A rainha de um reino que ninguém nunca viu, que canta supermal mas se acha o máximo, e tira sarro da reforma da previdência, foi minha personagem preferida. Afinal, quem não conhece um reino onde não se vive, e onde muito se festeja?

E o artista que leva o difícil fardo, de trabalhar para sobreviver e ganhar a vida, mas que também precisa sonhar para acalantar a alma. A solução é a poesia, meus amigos. Foi nesse espetáculo que anotei uma frase que ainda vou usar muito, pois costumo adotar expressões que me encantam pra usar sem moderação: “O reino é laico, mas eu sou do patuá”. Mesmo não sendo de minha autoria, recomendo o uso dessa pérola, para que todos a usem quando acharem necessário.

E que a poesia proteja a todos nós, amém.

 

Texto e fotos: Paola Brunelli

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