Era mais uma tarde de trabalho externo numa praça, acompanhando o Circuito Sesc de Artes. Com câmera a tiracolo, entre um registro e outro, um rapaz que devia ter seus 30 e poucos anos, levemente embriagado, me chamou de lado e disse:
– “Tira uma foto minha?”
– Eu posso tirar, mas não vou ter como te entregar.
– “Não tem problema não. Algum dia eu pego essa foto.”
Pose, clique feito, olha a foto.
– “Gratidão”.
Aquela atitude me deixou intrigado. Pensei: no fundo mesmo ele só queria ser notado.
– Você mora por aqui?, resolvi perguntar.
– “Moro na favela do Morro do Macaco, é ONDE A DOR SE ESCONDE“.
Nesse momento, várias coisas passaram pela minha cabeça, mas depois disso não consegui falar mais nada; só disse meu nome e perguntei o dele – José, ele respondeu. Um aperto de mão, um abraço sincero e cada um seguiu seu caminho, após suas palavras de fé.
Fiquei com aquilo na cabeça. “E agora, José?”
Passei dias pensando naquela frase.
Onde a dor se esconde? O que ele queria me dizer? Eu queria entender.
É provável que é lá onde está sozinho, entorpecido pelos seus pensamentos, que a dor da realidade aumentada ou inventada invade sua mente. Mas aquelas palavras…Talvez tiradas de alguma música, ou aprendida nesse mundão, numa sabedoria popular… Só sei que atingiram meu coração como uma verdadeira flechada.
Nesse mesmo dia, caminhando pela praça, fiquei imaginando quantas pessoas tiveram seus corpos atravessados pelos coletivos de leitura, com histórias contadas ali, pronunciadas olho no olho com vozes felizes ou até embargadas.
A partir daquele momento passei a observar tudo à minha volta. Era o verdadeiro movimento da vida pulsando de diversas formas em sua máxima potência. E em cada situação a felicidade se apresentava: nas pessoas e cachorros caminhando, seguindo por direções que ninguém sabe aonde iriam chegar; nas crianças correndo na praça; no garoto da bicicleta com o pedal quebrado de tanto andar; no senhor que estava trabalhando, cobrindo a casa pra chuva não molhar; no menino que viu os instrumentos e, ao invés de dançar preferiu, tocar. O palco do mundo e os atores reais com olhos brilhando em momentos de encontros e desencontros… Todos os personagens com uma mesma necessidade: a de se conectar.
E se uma breve frase teve o poder de mexer com meu corpo, por que não podemos dizer que a arte pode curar? Em uma palestra, um psicanalista falou sobre uma cidade do interior onde um grupo de médicos chegava numa praça e recebia gente que queria conversar sobre a própria saúde. Eles ouviam as pessoas e se interessavam por seus relatos de vida, pelo conhecimento popular, suas simpatias e seus chás. Como resultado, pouco a pouco os adoecimentos na cidade começaram a diminuir. Ao fim da história, veio a revelação: esse foi um caso inventado. Na medicina essa prática ainda não existe. Mas no campo da arte eu vi esta utopia se concretizar. Não eram médicos com jaleco, eram artistas, músicos, atores, leitores e até inventores que invadiram a praça tocando e despertando as potências humanas, e através deles a gente conseguia se enxergar.
A ciência sabe de muitas coisas, mas pra tantas outras a resposta está bem na nossa frente. Não se apresenta diante dos olhos, mas assim como o vento, está no impalpável, na inspiração, no sopro de vida, naquilo que não se pode tocar, mas que a gente sabe que está lá. O cinema faz viajar, nos transporta para a realidade de outro lugar, ou a realidade que alguém imaginou e soube compartilhar; a dança promove a sintonia e o encontro dos corpos que se lançam ao invisível; o espetáculo de teatro que, mesmo sem palavras, consegue emocionar; isso sem falar das músicas que nos fazem refletir, viajar no tempo, recordar. E aquele momento que o artista dá um salto mortal e por uma milésima fração de segundos o seu coração para. Você nem repara, mas logo depois a pulsação tende a aumentar.
Quantas conexões no corpo a arte pode alcançar? Há uma ligação entre a arte e o bem-estar. São coisas que não se pode separar. A flechada das palavras, a voz embargada, a pulsação sanguínea, o batimento acelerado, o sorriso no rosto e a memória ativada. Educação e cultura são coisas que não têm preço, mas possuem um valor que não é possível contabilizar. Não é nenhuma novidade, mas vale lembrar: espaços onde não há arte e cultura, a dor tende a se pronunciar.
Não é o lugar que faz as potências. São as potências que fazem o lugar.
Por todas as praças que passei, tentei procurar, mas percebi que a dor não estava lá.
Texto: Ronaldo Domingues